JornalDentistry em 2024-10-23

CONVIDADOS

Desafios para a Profissão. Um plano de ação em curso

Philip Kotler, um dos autores do famoso livro Marketing Management, dizia que “há três perfis de lideranças: as que fazem as coisas acontecerem, as que veem as coisas acontecerem e as que se interrogam sobre o que aconteceu”

Dr. Miguel Pavão, Bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas

Esta qualificação da liderança pode ser facilmente transposta para a medicina dentária, pois é uma analogia que muito diz sobre a situação em que nos encontramos.
 
Os médicos dentistas enquadram-se, indubitavelmente, no primeiro grupo. Perante uma profissão excluída da génese do Serviço Nacional de Saúde e um país resignado
quanto a um futuro desdentado, as primeiras gerações de profissionais fizeram as coisas acontecerem, quase sempre sozinhos.
 
Por mote próprio, criaram uma rede de cuidados de medicina dentária espalhada pelo país, empenharam-se na literacia da população e na mudança do paradigma prevenir para evitar o tratamento, tratar para devolver sorrisos.
 
Contudo, sozinhos, não conseguem derrubar os “Golias” da profissão, ou seja, os múltiplos desafios socioprofissionais, cada vez mais causados por fatores e entidades exógenas e difíceis de regular.
 
São desafios que formam uma espécie de tríade, composta pelos médicos dentistas e pelos pacientes, aos quais se juntam a prática clínica. Os primeiros estão a braços com uma profissão cujo desgaste físico e mental é avassalador.
 
O mundo mudou e aos médicos dentistas não é exigida apenas uma boa atuação médica. São necessárias competências multidisciplinares, em áreas como gestão, liderança, finanças e comunicação.
 
A estas exigências acrescem as dificuldades inerentes a um mercado de trabalho saturado, que convida à emigração ou ao abandono da profissão à procura de outros rumos de vida. Há, portanto, uma desadequação relativamente ao ensino e à necessidade real de médicos dentistas para atendimento à população. Acresce a necessidade de fixar numerus clausus à garantia de um ensino de qualidade, que
privilegie qualidade em detrimento de quantidade.
 
A legislação e a regulamentação que visam o setor, tantas vezes desajustadas das especificidades da medicina dentária, assim como a crescente concorrência de grupos económicos e das sociedades multidisciplinares (o registo obrigatório
junto de cada associação pública apenas se materializou com o novo Estatuto), são igualmente condições impactantes no exercício profissional. O papel do médico dentista tem de ser conservado pela responsabilidade médica e pelo risco que
assume ao tratar os doentes durante os seus atos médicos e decisão nas opções terapêuticas.
 
Vejamos agora os pacientes/doentes. O acesso aos cuidados de saúde oral, neste caso, a falta dele, é a questão mais fraturante do modelo social. São seis milhões de portugueses com falta de dentes que aguardam o dia em que exista um programa governamental com ambição de proporcionar, de uma vez por todas, o acesso universal a estes cuidados.
Urge, também, promover a literacia para que a visita ao médico dentista seja encarada como uma consulta de rotina, pois só assim é possível caminhar para uma prática cada vez mais preventiva e não interventiva.
 
Por outro lado, o perfil do paciente também mudou. Hoje, demonstra as suas necessidades e preocupações. Criarplanos personalizados, focados nos resultados funcionais eestéticos, que cumpram as expectativas dos pacientes, é um desafio de comunicação e gestão, mas também uma oportunidade para tirar partido das tecnologias cada vez mais presentes na nossa vida.
 
E é aqui que entra o último eixo socioprofissional – a prátca clínica. O avanço vertiginoso da tecnologia tornou-se útil para o dia-a-dia profissional, desde que esta seja utilizada com responsabilidade. A ética é, por isso, um imperativo a não descartar.
 
A Inteligência Artificial (IA) traz um mundo de possibilidades, mas o médico dentista e o paciente só beneficiarão das suas vantagens se existirem limites éticos, deontológicos e legais à sua utilização. No caso da medicina dentária, a profissão vai sempre exigir muito das mãos do médico dentista e da capacidade de comunicação com o paciente.
 
E esta é uma característica inata que devemos preservar. Chegamos, por isso, aos dias de hoje, em pleno século XXI, com a IA a abrir-nos a porta do futuro e, simultaneamente, a lidar com problemas que deveriam fazer parte do passado,
como é o caso da universalização dos cuidados de saúde oral.
 
É então que se encontram aqueles que veem as coisas acontecerem, leia-se os sucessivos governos, que pouco fizeram nesta matéria. Se, por um lado, a revolução tecnológica vem resolver desafios com que os pacientes e médicos dentistas se deparam, por outro, a medicina dentária enfrenta desafios socioprofissionais cuja resolução está unicamente nas mãos do Homem, neste caso, governo, poder político,
instituições de ensino, entidades de saúde (e não só), reguladores, entre outros.
 
Num momento em que se debate o Orçamento do Estado para 2025, nunca é demais lembrar que a verba para a saúde oral não ultrapassa os 20 milhões de euros: uma insignificância. Sem um orçamento robusto, continuaremos a correr atrás dos prejuízos de 40 anos de desinvestimento nesta área enquanto causa pública.
 
Cabe ao Estado fazer a parte que lhe compete: criar condições para que o acesso à saúde oral seja um direito pleno à saúde. Não por uma questão ideológica, mas por uma evidência bem ilustrada na realidade portuguesa.
 
A prevalência das doenças orais, como a cárie, a doença periodontal e o cancro oral, tem um impacto na vida das pessoas e também um impacto financeiro dispendioso, e são comorbilidades para as principais doenças crónicas não transmissíveis (DCNT), com maior mortalidade mundial.
 
A Organização Mundial de Saúde – esta sim consciente deste desafio – instiga os Estados Membros, onde Portugal não é exceção, a definir novos modelos que integrem a medicina dentária nas diversas redes de equipas multidisciplinares e programas de ação e prevenção das doenças não transmissíveis, nomeadamente as cardiovasculares e a diabetes (nas quais as doenças orais têm grande impacto), e
de outras patologias, como é o caso dos distúrbios do sono.
 
No próximo mês de novembro, em Banguecoque, terá lugar uma reunião em que estará em foco a relação entre a saúde oral e as DCNT, e na qual se espera definir uma coligação, através da “Declaração de Banguecoque”, para o Global Oral Health Action Plan 2023-2030. Um plano de ação global, de longo prazo e agregador, que valorize o ato médico dentário, adeque a legislação ao setor e que promova o trabalho
conjunto dos setores público, privado e social. Uma agenda, que tarda por tardia, mas mais do que nunca necessária!

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