O JornalDentistry em 2021-3-16
Durante as últimas décadas a medicina dentária portuguesa e internacional assistiu a uma penetração exponencial da classe feminina na profissão.
No entanto, ainda existe uma grande percentagem da população que associa “a ida ao médico dentista” a uma figura masculina, dado que a profissão era em tempos quase exclusivamente constituída por homens. A atualidade presenciou uma mudança completa de paradigma e neste momento cerca de 2/3 (60.2 %) dos membros inscritos na Ordem dos Médicos Dentistas são mulheres. A feminização da profissão tem vindo a aumentar, com uma taxa de 151 % em 2018.
Embora em termos percentuais existam cada vez mais mulheres detentoras de mestrado integrado em medicina dentária, esta percentagem ainda não é refletida numa maior ocupação de cargos de poder ou posições de desta- que por parte das mulheres. Exatamente por existir falta de paridade é que foi criada uma lei que sugere que órgãos de poder oficiais devem seguir regras de paridade entre géneros aquando da sua constituição. Se essa paridade já existisse não precisaríamos deste tipo de leis. O mesmo se aplica ao Dia da Mulher, que só faz sentido existir porque ainda não existe igualdade de oportunidades.
Onde se nota mais diferença de equilíbrio entre géneros são nos casos de docência universitária, chefia de organizações profissionais ou mesmo como palestrantes em palcos internacionais. Nestas áreas de poder, as prevalências não têm acompanhado as tendências da penetração feminina na profissão. Acho que isto se deve ao facto de ser uma profissão que durante muitos anos foi dominada pelo sexo masculino e os círculos de poder estarem muito vedados aos amigos e conhecidos, acabando por existir algum machismo. Também o papel de Mãe muitas vezes rouba o protagonismo da carreira profissional, não sendo fácil conciliar a vida pessoal e profissional. No entanto, com as mudanças de mentalidade, já existe mais distribuição das tarefas de educação e acompanhamento dos filhos, assim como na gestão da vida doméstica e de casal.
Existem especialidades dentro da medicina dentária que são mais conectadas com determinado género. Acho que a maior parte do público atribui as especialidades mais cruentas (cirurgia oral e implantologia) preferencialmente aos homens e as especialidades mais delicadas (odontopediatria, ortodontia, e estética dentária) preferencialmente às mulheres. Prova- velmente isto acontece porque no geral atribuímos uma conotação de força e poder mais aos homens e uma conotação de estética e delicadeza mais às mulheres. No entanto existem algumas mulheres com presença forte na cirurgia e homens com muita competência na ortodontia e odontopediatria. Eu sou especialista em Cirurgia Oral pela OMD, assim como algumas mulheres. No entanto num Universo de 138 especialistas em Cirurgia Oral, só 23 são mulheres, o que corresponde a apenas 16%. Acontece o mesmo a nível internacional, observando-se poucas mulheres a evidenciar-se na cirurgia oral. Se me perguntarem se acho que a mulher tem menor aptidão ou formação diria que não. No entanto, ainda se nota que uma mulher tem de trabalhar muito mais e fazer formação mais diferenciada para que lhe seja dada a oportunidade de ocupar cargos ou lugares de destaque. Felizmente a realidade está a mudar e embora na minha geração sentisse bastante resistência na progressão da minha carreira, penso que na geração atual e gerações vindouras será mais fácil e as oportunidades vão-se multiplicar.
Como podemos mudar as mentalidades? Isto poderá ser alterado se todos tivermos uma atitude neutra e premiarmos quem tem valor académico, científico e clínico, independentemente do género. Também a criação de movimentos para promover e apoiar as mulheres profissionais na medicina dentária poderá contribuir para uma evolução das mentalidades.
Existe necessidade de existirem grupos e movimentos de apoio às profissionais femininas para tentar criar consciência das mudanças dos tempos e para dar suporte às mulheres na nossa profissão. Porque a mentalidade tem de acompanhar a realidade, alguns movimentos nos quais estou envolvida começaram a surgir para promover as mulheres profissionais na medicina dentária a nível mundial. O primeiro movimento que surgiu neste sentido foi o “Divas in Dentistry”, que foi criado pela Dra. Delia Tuttle em 2014, sendo eu a primeira líder internacional, com o objetivo de conectar, ajudar e promover o trabalho desenvolvido pelas mulheres médicas dentistas. O trabalho construído já tem dado os seus frutos com organização de congressos mundiais, lançamento de livros, site (www.divasindentistry.com) e grupo de Facebook (https://www.facebook.com/divasindentistry/), mas ainda falta muito trabalho para a existência de igualdade de oportunidade entre géneros na nossa profissão, nomeadamente nas áreas cirúrgicas. A consciência está a aumentar com a criação de outros movimentos idênticos (por ex. Leading Ladies In Dentistry e Women Leardership in Dentistry, cujos congressos foram realizados em 2019 e 2020 integrados no congresso Mundial da Quintessence e no qual tive o prazer de ser palestrante.
Que desafios existem para as mulheres na medicina dentária? Lutar pela existência de igualdade de oportunidade em cargos de poder entre géneros na nossa profissão. Mudar a mentalidade que certas especialidades são supostamente mais masculinas. Consciencializar a classe e o público que pelo facto de sermos mães e esposas não impede que também sejamos profissionais de excelência.
Espero que num futuro próximo, pelo menos na geração dos nossos filhos, as oportunidades em cargos de poder na medicina dentária sejam equilibradas entre géneros e que a percentagem de mulheres em termos de cargos de chefia, docência e como palestrantes seja minimamente proporcional, quando comparado com o género masculino. Não sou feminista, mas sim realista, e acho que rapidamente vamos ter que mudar as mentalidades e oportunidades dado que é inegável que a tendência de existirem mais mulheres que homens na profissão é já uma realidade.
Por Raquel Zita Gomes Médica Dentista, Pós-graduada em Implantologia, Mestre em Implantologia, Doutorada em Medicina Dentária, Especialista em Cirurgia Oral pela OMD