O JornalDentistry em 2020-5-26

CONVIDADOS

Glândulas Salivares: Que rumo?

Em mês de aniversário “redondo”, contando com quinze anos como médico e uma dezena como estomatologista, para além de continuar na mira do futuro, olhar o passado também já começa a fazer sentido.

Tiago Fonseca, médico estomatologista

O interesse pelas glândulas salivares começou em 2005, determinante para a escolha da especialidade. Durante o internato, dois casos clínicos e, em 2009, um congresso em Xangai foram marcantes. E em 2013, já assistente hospitalar, em Barcelona (h)ouve uma palestra que o alavancou no conhecimento na área. Seguiram-se Corunha, Londres, Paris, Milão e Erlangen. Em 2016 estabeleceu a Clínica de Glândulas Salivares, na Casa de Saúde da Boavista. Nesse ano havia já organizado a “Conferência em Glândulas Salivares”, no Centro Hospitalar de São João, à qual se seguiu, dois anos depois, a organização da “Actualização em Glândulas Salivares”, na Casa de Saúde da Boavista. Este ano, a pandemia adiou a “Patologia Salivar e Medicina Geral e Familiar”. 

Na prática hospitalar, “fácil”: é a referenciação de colegas; já na atividade privada, a grande maioria dos doentes chega através de procura própria. Alguns depois de vários anos sem diagnóstico específico e/ ou múltiplas especialidades sem tratamento definitivo; outros procurando uma segunda opinião ao problema de base ou uma opção alternativa à proposta invasiva. No cômputo geral, para ser preciso, já perdeu a soma às muitas centenas de doentes (e consultas?) e às várias dezenas de cirurgias. Já às técnicas que tem vindo a desenvolver, a aritmética é exacta: 231 sialografias e 61 sialoendoscopias. Mas, no final, o que mais conta são as pessoas (mais) orientadas e as glândulas salvaguardadas. 

É determinante o papel das glândulas salivares na saúde geral e, especificamente, o da saliva na saúde oral. Por exemplo, um estudo demonstra que a utilização regular de cloro-hexidina altera a flora microbiona oral e, com isso, o risco de cáries, pela diminuição do pH da saliva. Outro estudo relaciona uma mutação genética responsável por fenda lábio-palatina e alterações nas glândulas sali- vares, relatando que modificações na composição de proteínas imunológicas conduz a um aumento de cáries. Mas, mais do que um fluído com funções várias, a saliva apresenta um enorme potencial diagnóstico ou prognóstico numa multiplicidade de situações ou patologias. A saliva poderá ser utilizada na deteção de alterações relacionadas com periodontite, doenças renais, doença de Alzheimer e mesmo cancro oral. Embora muitos trabalhos ainda estejam em fase de investigação e desenvolvimento, pelo potencial que a saliva tem como material de pesquisa, são de esperar mais-valias extraordinárias. 

E nestes tempos extraordinários, em plena pandemia, é incontornável abordar-se a relação entre a COVID-19 e as glândulas salivares. Do que já se sabe, salienta-se uma “Carta ao Editor” do Jornal of Dental Research, publicada por um grupo de trabalho do West China Hospital of Stomatology, intitulada “Salivary Glands: Potential Reservoirs for COVID-19 Asymptomatic Infection”. Nela, os autores pesquisam a expressão da proteína ACE2 em vários órgãos humanos e revelam que, por exemplo, é maior nas glândulas salivares acessórias do que nos pulmões. Para além disso, a percentagem deste vírus na saliva pode ser superior a 90%, o que sugere que a transmissão do SARS-CoV-2 em doentes assintomáticos pode ser originada pela infecção das glândulas salivares. Também daí a importância vital da utilização de máscaras por todos! (Nos profissionais de saúde oral, expostos aos aerossóis originados nas intervenções na boca, a utilização de EPI – equipamentos de protecção individual – é crucial.) 

Glândulas salivares: que rumo? Diferenciação! Diferenciação no diagnóstico e na terapêutica. Quem ultrapassa a clínica e termina na ecografia «normal»; quem se defende com o idiopático, dribla com a paliação ou remata com o “não há nada a fazer”; quem propõe uma sialoadenectomia submandibular por um cálculo ou uma parotidectomia superficial por um tumor benigno, pois... ou não evolui ou extingue-se. (Apelo: queiram, por favor, pesquisar «sialendoscopy» e «extracapsular dissection».) Um rumo é um norte. Diferenciação, princípio e fim. 

A litíase é das entidades nosológicas que colocam menos complexidade na avaliação. Já os quadros obstrutivos por estenose, rolhões ou dismotilidade masseterino-bucinadora, a parotidite juvenil recorrente – confundida com a parotidite epidémica – ou as disfunções glândulares (associadas a xerostomia  e/ou disgeusia) não só colocam desafios diagnósticos mas também terapêuticos (também pelo contexto bio-psico-social do doente), por vezes com necessidade de uma abordagem interdisciplinar. 

Sendo uma área do conhecimento que não encontra compromisso pela quase totatilidade dos profissionais que a ela poderiam ter, importa relevar conceitos-chave, principalmente para aqueles cujo papel é mais importante na identificação e/ou referenciação. Portanto, existindo “mandamentos”, generalistas mas  basilares por definição, os enumerados poderiam perfeitamente ser os de eleição:

1. A patologia das glândulas salivares é frequente e variada, apenas se encontrando dispersa e sub-diagnosticada;

2. A história clínica e o exame objetivo são a base  para o correcto diagnóstico, como em qualquer  especialidade;


3. Os principais sintomas/sinais, tumefação e/ou dor, relacionam-se com a topografia da(s) glândula(s) afetada(s);

4. A maioria dos doentes com sensação de boca seca  (xerostomia) não apresenta diminuição da quantidade de saliva (hipossialia);

5. A ecografia é um exame que depende de quem o executa, devendo ser realizado por quem tenha  experiência na área;

6. A sialografia e a sialoendoscopia são a melhor  metodologia diagnóstica (e terapêutica) dos  canais salivares;

7. Grande parte da patologia salivar cursa com síndromes obstrutivas (SO), sejam estas intrínsecas  ou extrínsecas;

8. A principal patologia das glândulas salivares acessórias é o mucocelo, e a da glândula sublingual é a rânula;

9. A causa mais frequente de SO da glândula sub-mandibular é a litíase, podendo complicar com um  quadro infeccioso;

10. As viroses e as doenças auto-imunes atingem  predominantemente a glândula parótida, por  regra bilateralmente;

11. As neoplasias são entidades nosológicas incomuns e, dentro destas, os tumores benignos são  a larga maioria;

12. Na patologia cirúrgica (cálculos e tumores), a legis artis assenta em intervenções conservadoras, minimamente invasivas. 

www.tiagofonsecaestomatologia.pt 

 

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OJD 123 DEZEMBRO 2024

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