A principal causa que é atribuída à propagação da gripe espanhola foi o fim da Primeira Guerra Mundial, quando, a partir de 1918, os soldados começaram a regressar a casa.
Por essa altura, tinham passado poucos anos desde o primeiro
voo na história da aviação. As viagens aéreas comerciais eram
raras e ainda se mantinha a controvérsia entre Orville Wright
e Santos Dumont sobre quem tinha sido o primeiro a descolar
um avião. Os meios de transporte mais utilizados eram os
comboios e os navios, o que permitiu que alguns lugares do
planeta nunca chegassem a ser afetados. Ainda assim, a gripe
espanhola foi considerada o maior ‘holocausto médico’ da história,
estimando-se que tenha sido a causa de morte de 50 a
100 milhões de pessoas entre os anos de 1918 e 1920.
Em meados de setembro de 1918, o Diário de Notícias relatava
que, a propósito da pneumónica (nome que foi atribuído
à gripe espanhola em Portugal), a Delegação de Saúde do
Porto afirmava que, enquanto não se pudesse estabelecer o
diagnóstico bacteriológico, a nova enfermidade deveria ser
qualificada de gripe “epidémica e ligeira”. Já Ricardo Jorge,
diretor de saúde pública, defendia o diagnóstico de influenza,
só que manifestava uma séria preocupação, pois, quando
comparada com a gripe comum, esta apresentava-se de forma
“grave e mortal”.
Este levantamento histórico desse período é interessante
para se perceber como, um século depois e com a tão badalada
inovação tecnológica, os mesmos comportamentos se continuam
a verificar. À semelhança do que aconteceu em 1918,
aquando do início do surto do novo Covid-19, observaram-se
as mesmas divergências de opinião. Nas televisões, nos jornais,
nos podcasts ou nos blogs, “cada cabeça, sua sentença”.
Assistiu-se, durante semanas, a um circo de especialistas,
cada um com um título mais pomposo que o outro, a dar a sua
opinião sobre algo que ainda ninguém sabia o suficiente para
afirmar o que fosse.
O mais grave é que estas divergências de posição, sobretudo
oriundas de representantes de instituições que se esperam
credíveis, não contribuem em nada para a formação avisada
da opinião pública e, muito menos, para o esclarecimento dos
decisores políticos. Mesmo agora, em pleno pico da crise, os
artigos publicados nas revistas médicas especializadas correspondem sobretudo a séries de casos clínicos e, portanto, carecem de alguma robustez quanto à evidência científica apresentada.
É natural que os estudos observacionais, os ensaios
clínicos aleatorizados e, sobretudo, as meta-análises destes
ainda demorem algum tempo a ser publicados.
Num outro exemplo retirado da história da Febre das moscas
de areia (nome que foi atribuído à gripe espanhola em
Itália), uma comunidade perto da baía de Bristol, no Alasca,
escapou praticamente incólume. A decisão que contribuiu
para o efeito não podia ter sido mais simples: desde que se
tomou conhecimento do surto, as escolas foram encerradas,
as reuniões públicas foram proibidas e foi impedido o acesso
à vila pela estrada principal. De futuro, a região de Macau será
recordada da mesma forma pela quarentena que fez perante
o novo coronavírus. Dez infetados, dez curados e mais de
um mês sem novos casos positivos. O mesmo não se pode
dizer sobre a península itálica que enfrenta sérios problemas.
Os recursos de saúde são cada vez mais escassos perante o
número de infetados. Num país que se insere numa União
Europeia evoluída, não é justo que médicos e enfermeiros
sejam colocados no papel de “Sofia” e ter de vir a escolher
“quem vai e quem fica”.
Portugal ainda está a tempo de seguir os melhores exemplos.
Para tal, precisa, em primeiro lugar, de coragem. Quando
nos pedem para esperar o melhor e preparar para o pior, nós
aceitamos as consequências de viver numa natureza incerta e
incontrolável. No entanto, devemos exigir a tomada de decisões,
mesmo que más, em detrimento da indecisão. As medidas
de contenção são absolutamente necessárias e devem ter
efeito imediato. Não porque o vírus seja letal para todos os
que o contraem. Há, por certo, muitos casos assintomáticos
e outros não diagnosticados, os quais, juntando aos cálculos,
diminuíram a verdadeira taxa de mortalidade. O verdadeiro
objetivo é que a transmissão entre as pessoas seja lenta e o
número de casos com necessidade de intervenção hospitalar
não ultrapasse o número de recursos disponíveis do Serviço
Nacional de Saúde. É obrigação da nossa sociedade a proteção
de todos e temos uma dívida de solidariedade geracional com
os mais velhos e os mais frágeis.
Em seguida, é necessária também uma clara mudança de
filosofia laboral. Muito antes do novo coronavírus, milhares
de portugueses se queixavam diariamente do número de
horas que trabalham, dos poucos dias de férias que têm e das
parcas promoções que recebem, fazendo muito pouco para
o alterar. Pior: acreditam que ficam mais bem vistos pelos
patrões se ficarem no escritório até mais tarde, se responderem
a e-mails durante o fim-de-semana e se forem trabalhar
“engripados”. Do muito mal que o coronavírus nos tem feito,
devemos pelo menos questionar-nos sobre se deve ser a
“produtividade desenfreada” ou a “nossa saúde” que deve vir
em primeiro lugar. Até porque a produtividade acumulada de
anos a fio destrói-se num ápice, como se observa pelo estado
das bolsas na atualidade. Por outro lado, a saúde demora anos
a recuperar. Se as previsões atuais se mantiverem, os danos
do Covid-19 serão muito maiores do que apenas o número de
mortos e os sobreviventes com pulmões em mau estado. Com
o sentimento generalizado que está criado e a quantidade de
famílias desfeitas que se avizinham, doenças do foro psicológico,
como a ansiedade e o stress pós-traumático, terão consequências
incalculáveis nos anos vindouros.
Perante todo este cenário, a medida de suspender as
consultas de medicina dentária não urgentes apenas peca
por tardia, dado o risco de transmissão demasiado elevado,
mesmo utilizando todos os utensílios de proteção e de higiene
a triplicar… As informações já são mais do que muitas
para continuarmos a pensar que se trata apenas da Febre
dos três dias (nome que foi atribuído à gripe espanhola pelos
americanos).
Autor: Fernando Arrobas, médico dentista
fernando.arrobas@jornaldentistry.pt