JornalDentistry em 2025-2-14

CRÓNICAS

“Romeu e Julieta”

“Quando crio algo, desejo que alguém pense: ‘Existem outros mundos, silenciosos, remotos, solitários, distantes - onde a vida se mostra com toda a sua intensidade. Vamos até lá.’”

Dra. Susana Traila. Médica Dentista com Formação Avançada em Humanidades Médicas: Medicina Narrativa.

Com este trecho de uma carta de amor de Kahlil Gibran para Mary Haskell, em 1914, adejo a irrequieta imaginação a tentar suster o amor em tempo de breu.

Romeu e Julieta. Ícones intemporais do amor romântico. Sinónimos de jovens apaixonados. Universalmente glosados. Interpretados. Referenciados. Provavelmente Magnum opus de William Shakespeare. “Jamais história alguma houve mais dolorosa/ Do que a de Julieta e a do seu Romeu.” Amor que representa a luz, mas só pode ser vivido nas sombras. Amor que veste semântico e despe pela morte a emoção álgica. Representação trágica dos conflitos humanos. Salpicos de água benta contra a malícia dos mal-amados. Romeu e Julieta: como os imagino na paleta da minha mente. Sem sombra. Só luz. E cor. Naturalmente abraçados. R e S - as suas iniciais - em delicada silhueta, dançante. Despidos do exuberante, do que sobeja. Nada mais no entorno, só o traço amante. E o sino, não da torre da igreja que anuncia a morte; sino que do alto toca por sorte esta união; sino vermelho - da eterna paixão; campânula em flor que brotou da esperança; verde como a inocência da criança em amar em sincera comunhão. Que quem “dá ao badalo” faça soar as vibrações sonoras dos amores; não gesto verde de inveja que enseja as dores; não movimento de pelejar, tagarelar, envenenar por quezílias entre famílias; não culminar num acontecimento funesto a um sentimento honesto, numa campa, fatal. Outro final. Reescrevo o enredo. Não por folguedo ou egotismo. Reconheço os gigantes; Masuccio Salernitano, Luigi da Porto, Matteo Bandello, Arthur Brooke, William Painter, William Shakespeare. Por amadorismo - qualidade de amador - concebo uma ilustração sem a tragédia talhada. Num traço infantil uma versão desenhada sem perícia. “Andam num sino” os eternos amantes. No fervor da puerícia. Sentimento ao léu. 

Véu amargo, névoa de infernos, de extermínio. Acontecimento que se repete, ciclicamente, sob domínio sanguíneo. “Esta guerra que agora assola a Europa atinge todas as pessoas do mundo; tu e eu também lutamos ali.” Palavras escritas há mais de um século por Kahlil Gibran à sua amada e benfeitora.   Empatia. Intersubjectividade Responsabilidade social. Valores amarfanhados. Direitos violentados. Dores evitáveis galopam às ordens das mentes déspotas que dizimam aldeias. Assassinam projectos de vida. Abjectos. Com desamor nas veias separam casais. Gélidos perante os ais da criança que berra pelo amor de seus pais semi-mortos. Necrologia do Amor. O céu chora, pois, o Homem não aprendeu. 

Recupero Romeu e a impossível consumação do enlace. Com as letras do alfabeto tento uma composição musical dançante que ressuscite o nobre sentimento e suscite um final feliz no romance. Que dance a (minha) Julieta (atévelhinha) nos braços do seu amado! Face radiosa. Rosa carmesim num eterno palpitar. “Quando crio algo” busco a construção - através da imaginação e do livre uso do pensamento crítico - de novas respostas para questionamentos sobre as tragédias humanas. O mundo de um texto pode ter uma função social: o ensejo de suscitar uma reflexão sobre a complexidade dos aspectos essenciais da vida, a escolha de acções prudentes e responsáveis que criem novas realidades. “Quando crio algo” busco - através do texto enquanto partitura musical - gerar um novo acontecimento, tendo o leitor - que o queira ler - como maestro. Nesta conjectura crio um roteiro aberto para um mundo possível, um mundo melhor.
Fevereiro. São Valentim. Dia dos namorados. Um cheiro a festim invade o comércio.      O braseiro fica incandescente. Há quem acuse Cupido - filho de Vénus, Deus do Amor - de arqueiro incompetente. O amor não se exige. Não se agenda. Não aflige em contenda. É a oferenda de um abraço que contenta. E que devia estar acessível em toda a geografia humana.

 

Susana Traila Médica Dentista com Formação Avançad em Humanidades Médicas: Medicina Narrativa

 

— O autor escreveu segundo a grafia anterior ao AcordoOrtográfico de 1990

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