JornalDentistry em 2024-10-19
Há quem diga que estamos quase a entrar na próxima era da medicina dentária. Depois da era moderna, até aos anos 80, e da era digital dos anos 80 até agora, seguir-se-á a era da medicina dentária conectiva (connected dentistry).
Célia Coutinho Alves, DDS, PhD, médica dentista doutorada em periodontologia
Será uma era onde se espera mais precisão e maiscolaboração entre clínicos e laboratório, inclusivamente muito distantes fisicamente entre si, através da partilha na nuvem. Isto no sentido de entregar, cada vez mais, um trabalho centrado no paciente.
A tentativaserá a democratização da tecnologia, disponível, talvez, a partir de centros
produtores/tratadores de informação, disponibilizando o acesso ao diagnóstico e tratamento via nuvem.
Este contexto poderá ser muito o reflexo duma nova geração de médicos dentistas que pertencem à geração C, uma geração mais Criativa,
Comunicativa, Conectada (mesmo que seja através de ecrãs). E poderá ser desta forma, integrando comunidades de clínicos e processos digitais analisados recorrendo à inteligência artificial (IA), que a medicina dentária cresça e se revele cada vez centrada no paciente, ainda que, para tal, muitos mais interlocutores sejam consultados. No entanto, quando vejo o futuro da medicina dentária assim desenhado, colocam-se-me dois anseios.
Primeiro, quando os editores de código para a programação da inteligência artificial estão a criar a possibilidade de os programas “adivinharem”, anteciparem o que queremos saber ou fazer a seguir, quase como o programa de escrita inteligente que permite sugerir palavras à medida que escrevemos as primeiras letras, poderemos cair no risco da IA vir a sugerir o mesmo resultado para todas os diagnósticos que comecem da mesma maneira. Por exemplo, um paciente que apresenta uma % de
sangramento à sondagem de 40% e exposição radicular pode entrar na chaveta imediata da antecipação do diagnóstico de periodontite quando é apenas uma gengivite com recessões gengivais. E assim tornar a rapidez do resultado no erro do pressuposto. Aprendi cedo que a essência dum bom diagnóstico está nas perguntas certas a fazer. O resultado depende das perguntas que fazemos e vemos respondidas. Porque só encontramos o que procuramos. Temo que com a programação que a IA desenvolve por estes dias, os resultados a que nos levará poderão ser muito pareci-
dos se introduzirmos as primeiras 2 ou 3 perguntas ou premissas iguais.
Isto à custa da rapidez do resultado, da recolha fácil da imagem digital, da antecipação em tempo real do desenho 3D. E, assim, podemos estar perante resultados e pensamentos que a máquina antecipa por nós, convencidos de que é mesmo assim que pensamos. A máquina antecipará os nossos pensamentos fazendo-nos achar que o que ela pensa é o que nós pensamos.
Segundo, se os processos serão democratizados, o paciente a viver num país centro-africano poderá, em última análise, ser avaliado e receber o mesmo tratamento que um paciente a viver na Europa Central. E a pergunta que se coloca é como se fecha o ciclo? Quem faz o tratamento?
Quem entrega o trabalho? Talvez os humanoides lançados este mês pela Tesla possam ser programados para entregar igual resultado em qualquer circunstância.
A única variabilidade aqui será quem recebe o tratamento, o humano. Esse continua a ter cérebros únicos e bocas ímpares.
Mas por quanto tempo mais? Por quanto tempo mais acreditaremos sermos nós a
pensar os resultados dos processos que criamos e entregámos? Por quanto
tempo mais seremos seres de identidade única? Por quanto tempo mais seremos apenas humanos? E médicos dentistas?
Célia Coutinho Alves, Médica Dentista Especialista em Periodontologia pela OMD, Doutorada em Periodontologia pela Universidade Santiago de Compostela