O JornalDentistry em 2021-7-29
Sempre ouvi dizer que podemos encarar os tempos difíceis como obstá- culos intransponíveis ou como novas oportunidades. E se este quase ano e meio de pandemia não é um exemplo disso mesmo, então não sei o que é.
Célia Coutinho Alves, DDS, PhD, médica dentista doutorada em periodontologia
Talvez pudéssemos inicialmente pensar que, vivendo em distanciamento físico e social, de sorriso a maior parte do tempo tapado pela máscara, não seria a altura ideal para investir ou transformar o sorriso. Afinal até andamos mais cansados, tristes e com menos vontade de sorrir. Mas o facto de nos encontrarmos à distância através do ecrã, obriganos a visualizar a nossa imagem no espelho de pixels, e o nosso sorriso passa a estar à nossa frente, em alguns casos, várias horas por dia. Esse facto fez nascer o “Zoom effect”.
Um inquérito feito a cerca de 2000 pessoas adultas no Reino Unido concluiu que 58% delas alteraram a maneira como percecionavam o seu sorriso como resultado das novas tecnologias de videoconferência. De facto, ao visualizarem-se na câmara, fenómenos como a cor ou o posicionamento dos dentes, ficaram mais notórios. Eu própria foi solicitada para alterar uma coroa cerâmica antiga no dente 31, de um paciente que a teria colocado há mais de 20 anos. Embora tivéssemos já falado muitas vezes em alterá-la por razões estéticas, porque estava já fraturada no bordo incisal e apresentava-se de cor opaca, não integrada no sorriso, foi apenas agora e devido a este “efeito zoom” que o paciente me procurou, solicitando desta vez a sua substituição.
“Doutora, já não gostava muito desta coroa antiga, mas agora nas reuniões online só vejo este dente branco quando falo, salta à vista.” – disse-me. Irónico parece ser, também, este fenómeno de haver um boom na procura da especialidade da ortondontia, para alinhamento dentário, quando passamos socialmente a esconder o sorriso atrás da máscara. Mas a questão é: atrás da máscara, mas à frente do ecrã! Ainda no Reino Unido, 84% dos ortodontistas reportam um aumento na procura do tratamento ortodôntico por pacientes adultos, mais uma vez ligado ao efeito das video- conferências. No início da pandemia, assim que passamos a usar socialmente a máscara, já tinha ouvido relatos dos colegas oftalmologistas, que viram invertida a procura das cirurgias às cataratas pelas da correção a laser miopia nos pacientes que usavam óculos.
O confinamento/receio da população mais idosa, portadora de cataratas e patologias degenerativas oculares e o fenómeno constante de embaciamento das lentes com o simultâneo uso de máscara a cobrir o nariz, levou ao decréscimo das primeiras e um aumento significativo das segundas.
Dois exemplos, de como na área médica, a adversidade acabou por revelar um nicho de oportunidades. Mas concordo que até agora só estive a ver o copo meio cheio. Temo que a instabilidade económica, o burnout psicológico da sociedade e o distanciamento social crónico possam vir a esgotar estas oportunidades muito rapidamente. Ou a criar outras.
Neste crescente pseudo controlo da pandemia, advinha-se, ainda, um verão esquizofrénico, como esquizofrénicas parecem as medidas e contramedidas anunciadas às quintas-feiras. Merecemos todos um período de férias, que voltamos a não conseguir planear nada, com o fantasma dos isolamentos profiláticos a bater à porta. Isolamento dos totalmente vacinados. Isolamento dos contactos daqueles facilmente rastreáveis. Os das escolas, ATLs, infantários. Temo que passarão, muitos, a não se deixar rastrear antes das férias. A tirar uns dez dias de férias antes propriamente de ir de férias para não arriscar um isolamento profilático dos filhos, que estrague as férias a todos. E os nossos governantes continuam sem entender que estas férias são terapêuticas, são imprescindíveis e que a % de contactos de contactos de crianças na escola que testam positivo é ínfima comparativamente à % dos que, com o cutelo do isolamento são impedidos de exercer o direito a umas férias terapêuticas. E depois será pior, e custará a todos muito mais tempo e muito mais dinheiro.
Temo que estas férias, mais famílias responsáveis e com excelente bom senso e dever cívico vão ter os telefones seletivamente desligados. Porão elas os seus contactos móveis em isolamento profilático para não arriscar uma chamada de um algoritmo digital sofisticado criado por homens tei- mosamente desajustados no risco em saúde pública mental.
Desejo a todos umas excelentes férias terapêuticas. Voltamos em setembro juntos e com imunidade de grupo!