JornalDentistry em 2023-7-13

EDITORIAL

É preciso ser

Quase, quase a entrar em férias, não consigo dizer que vou totalmen- te descansada. Na verdade, temos a sorte de viver e trabalhar num país tranquilo à beira-mar plantado, cheio de gente capaz e que dá cartas em várias áreas.

Célia Coutinho Alves, DDS, PhD, médica dentista doutorada em periodontologia

Sempre com trabalho, esforço, criatividade e muita perseverança. E depois, vem sempre uma lei, uma diretiva, um despacho que tende, com a premissa de que todos somos iguais e valemos o mesmo, a diluir por todos, aquilo que só alguns se esforçaram por construir. 

Somos médicos dentistas, clínicos e técnicos, com princípios biológicos e éticos a respeitar, em benefício dos nossos pacientes. Praticamos atos médicos para os quais fomos treinados e capacitados por entidades académicas acreditadas. Não é mensurável a vantagem de ser ensinado por aqueles que mais sabem do que falam. Porque são pares, porque já trataram muitos pacientes, porque respiram “dentes” desde o primeiro ano da faculdade. A dedicação à profissão vem de muita vontade de servir o paciente cada vez melhor, mais rápido, com técnicas menos invasivas e cada vez mais eficazes. 

Para estar na medicina dentária com o sentido de dever público de pro- mover e tomar conta da saúde oral dos portugueses, é preciso ser médico dentista ou médico estomatologista. O curso sempre foi de banda estreita. Um curso que capacita para a prevenção e tratamento em saúde oral, com as valências inerentes à formação, investigação e organização dos processos envolventes. Depois é preciso fazer. Fazer muito, treinar muito, falhar muito, antes fazer bem, muito bem. A excelência vem de perseverar sem- pre depois das falhas. E o professor é só aquele que falhou mais vezes do que o aluno alguma vez tentou. Ser médico dentista não obriga a praticar atos médicos para os quais estamos habilitados. Para ser médico dentista basta ser licenciado ou mestre em medicina dentária. Mas para praticar atos médicos em medicina dentária é preciso ser médico dentista ou médico estomatologista. É preciso estar inscrito na sua respetiva Ordem, estar sujeito à validação da sua formação, ao código ético e deontológico e a cumprir obrigações para exercer direitos. 

Assumir que outros que não estes possam, legalmente por outros que só legislam, atuar com “atividade diagnóstica, prognóstica, de vigilância, de investigação, de perícias médico-legais, de codificação clínica, de auditoria clínica, de prescrição e execução de medidas terapêuticas farmacológicas e não farmacológicas, de técnicas clínicas, cirúrgicas e de reabilitação, no âmbito do conteúdo funcional da medicina dentária” como atos próprios da profissão de médico dentista, parece-me uma decisão perigosa. Onde começa e onde termina a regulação destes atos médicos? E se legalmente o meu advogado poder fazer uma perícia médico-legal e o meu contabilista passar a prescrever medicamentos, fazer desvitalizações e extrações de sisos inclusos? E se para além disso não estiverem ao abrigo duma regulamentação da sua prática por critérios técnicos, éticos e deontológicos? Quem beneficia desta “legalidade”? Os pacientes? Os pacientes não são com certeza. 

Por tudo isto, dizia que não vou para férias descansada. Quero acreditar que a formação, o doutoramento, a especialidade que me habilitam entre os pares não serão nivelados horizontalmente por uma qualquer alteração à lei que habilita outros a poder fazer o mesmo. Tenho a certeza de que tal não vai acontecer. Até porque a história já nos ensinou que os pacientes são sábios e selecionam sabiamente. E a sua sensibilidade lhe dirá que para tratar dentes há que ir ao dentista ou a um médico estomatologista. Mas só a ideia de ter um legislador a pensar o contrário entristece-me profundamente. Num país à beira-mar plantado, parece haver alguns que, só porque podem legislar por ideias, deitam por terra todos os que trabalham seria e profissionalmente todos os dias, com as “mãos na massa”, quer dizer, na boca dos portugueses. 

Quero acreditar que as ideias peregrinas de alguns de legislar outros pela horizontalidade não vigorarão face à verticalidade duma classe profissional séria e regulada, que sempre se pautou pelo rigor médico em prol dos pacientes. E esses? Quem os regula 

 

 

— Célia Coutinho Alves, Médica Dentista Especialista em Periodontologia pela OMD, Doutorada em Periodontologia pela Universidade Santiago de Compostela 

 

Recomendado pelos leitores

O futuro da civilização
EDITORIAL

O futuro da civilização

LER MAIS

Translate:

OJD 122 NOVEMBRO 2024

OJD 122 NOVEMBRO 2024

VER EDIÇÕES ANTERIORES

O nosso website usa cookies para garantir uma melhor experiência de utilização.