JornalDentistry em 2023-10-20
Outubro entrou em força. Com calor e com vontade. Ainda cheira a verão. Na temperatura e na vontade de ir à praia, de relaxar, de prolongar os tempos sem agenda e sem horários. Sinto cada vez mais que estamos num tempo de superficialidade. Já não nos importamos como antes.
Célia Coutinho Alves, DDS, PhD, médica dentista doutorada em periodontologia
Já não nos sacrificamos pelo trabalho ou pelos outros. Já nos pomos em primeiro lugar. Posso estar errada, mas esta sensação agravou-se depois da pandemia. Com a digitalização a nosso favor, passamos a ser passivos, passamos a resolver as reuniões em tempo útil sem ter que lhes juntar o tempo das deslocações, a socialização, dos cafés, dos almoços, da vida inter-relacional. Passamos a consumir à distância, on demand, quan- do queremos, e como queremos. Podemos até estar sem nos mostrarmos, sem nos fazermos ouvir.
Agora que voltamos à vida real, deixamos de ser os mesmos. Passamos pela vida, como passamos pelos ecrãs, e isso é assustador! E nas novas gerações já se trata de um fosso de competências sociais muito difícil de recuperar. Há quem diga que não vão ser importantes as competências sociais na era da inteligência artificial e das máquinas que substituem, ultrapassando o Homem. Mas se é verdade que os algoritmos vão ser capazes de identificar, regular e corrigir parâmetros, também é verdade que ao Homem vai ser deixado o papel da empatia e da comunicação. Há quem diga que aos médicos vai-lhes ser pedido que falem com os pacien- tes, que os ouçam, os entendam e os tratem. A análise dos valores, das probabilidades, da medicação, essa vai ser feita por supercomputadores. Talvez esta possa ser uma forma eficiente e talvez a única de continuar a assegurar as funções de cuidado dum sistema de saúde esgotado que tem de canalizar o tempo e a energia dos especialistas para o que importa. Para que eles se possam importar connosco. Com os que precisam deles em alguma fase da vida.
Aos médicos dentistas vai-lhes ser pedido que acolham, ouçam, e valo- rizem os sintomas dos pacientes, para que os possam tratar. Os diagnósticos e os melhores planos de tratamento, baseados nos protocolos mais ajustados, serão criados por super-softwares. Até aqui nada de novo. Mas quero registar esta minha preocupação por uma nova geração que cresce atrás dos ecrãs sem desenvolver aquele que vai ser um dos mais importantes soft skills nas profissões médicas: a comunicação inter-pessoal.
O debate está instalado e até as escolas já ponderam a proibição da uti- lização dos telemóveis nos intervalos escolares a crianças e adolescentes. Para que possam brincar, inter-relacionando-se. Para que possam frustrar-se e resolver as suas frustrações comunicando o que sentem, o que as fizeram sentir. Quanto mais cedo e melhores formos expostos às dificuldades de gerir amizades, mais competências desenvolveremos para aprender a gerir as nossas expectativas, a nossas relações pessoais e pro- fissionais e mais estimularemos uma qualidade importante, a paciência. No mundo digital tudo acontece numa fração de segundo e muda-se de amigos e de papéis tantas vezes e tão rapidamente quanto quisermos. O tempo real é outro. É o da biologia e o da natureza e não o dos megabits.
Se me perguntarem qual é a maior dificuldade que encontro na esfera profissional onde estou inserida não tenho dúvida em responder que é a gestão de pessoas. Não é a técnica X ou Y. É sempre a gestão das expectativas dos pacientes, dos seus comportamentos à cadeira, dos seus traumas ou crenças, da sua valorização da saúde. E a gestão dos colaboradores, dos seus anseios, do seu nível de felicidade, do seu envolvimento com o projeto. Cada pessoa é um mundo e não conseguir comunicar com cada um desses mundos é deitar por terra qualquer possibilidade de intervir nele, de ajudar a cuidar, de fazer o que precisa de ser feito para ajuda-lo. A superficialidade nunca abrirá portas para cada mundo que somos. Só quando nos envolvemos e despertamos nos outros a confiança para implementar a vontade de serem tratados é que podemos medir o sucesso. E é a comunicar bem que chegamos lá.
Célia Coutinho Alves, Médica Dentista Especialista em Periodontologia pela OMD, Doutorada em Periodontologia pela Universidade Santiago de Compostela